Roberto Anderson: Erros em série no trato do Jardim de Alah

E o fato é que o Jardim de Alah do tombamento municipal deixará de existir com a consecução do projeto proposto na sua privatização

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O instituto do tombamento foi criado no Brasil pelo Decreto-Lei 25, de 30 de novembro de 1937. É ele que cria as diretrizes gerais dessa matéria e todos os demais órgãos de tombamento estaduais e municipais seguem os princípios ali estabelecidos. Nesse Decreto-Lei está definido que “As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum ser destruídas, demolidas ou mutiladas”. Esses efeitos só cessam em caso de destombamento de um bem. Além disso, as boas práticas adotadas pelos órgãos de Patrimônio Brasil afora impõem aos infratores desse preceito, além de multas, a necessidade de recomposição daquilo que foi descaracterizado.

No caso do Jardim de Alah, onde a Prefeitura do Rio de Janeiro licenciou a construção de uma extensa edificação para abrigar lojas e restaurantes, há duas situações superpostas. Primeiramente, ele foi tombado. É que diz, claramente, o artigo 3º do Decreto Municipal 20.300 de 27 de julho de 2001: o Jardim de Alah fica tombado, definitivamente, nos termos do Artigo 4º da Lei 166 de 27 de maio de 1980, inclusive as praças Almirante Saldanha, Grécia e Poeta Gibran. Essa última é a Lei Municipal que dispõe sobre o processo de tombamento no Município do Rio de Janeiro. A segunda situação incidente sobre o Jardim de Alah é que ele, mesmo sendo tombado, foi parcialmente descaracterizado pela implantação ali de um canteiro para a construção da Linha 4 do metrô. Tal descaracterização, irregularmente aceita pelo Município, precisa ser corrigida. Nos termos do tombamento, tal correção somente pode se dar com a recomposição do jardim, de acordo com suas feições originais.

No processo que contesta a possibilidade de descaracterização definitiva do Jardim de Alah, caso seja executado o projeto da Rio Mais Verde Empreendimentos S.A., empresa que venceu a licitação para a privatização daquele parque, a mesma empresa informou à Justiça que o Jardim de Alah não seria tombado, mas sim tutelado, uma proteção mais fraca. Essa informação é completamente contrária ao disposto no Decreto aqui citado que realizou o tombamento do parque.

A juíza da ação, Dra. Regina Lúcia Chuquer de Almeida Costa de Castro Lima, da 6ª Vara de Fazenda Pública da Capital, parece não ter considerado essa argumentação. No entanto, a juíza tem uma interpretação bastante equivocada sobre como gerir o bem tombado. Na sua decisão, ela afirma o seguinte: “A Praça Grécia merece um capítulo à parte, sendo necessário ressaltar que, desde há muitos anos essa parte do parque não mais existe, em virtude da utilização do local, em 2002, para a construção da Linha 4 do Metrô-Rio, depois ocupada pela COMLURB, mantendo-se no local até o momento. Assim, no local, não há o que preservar ou restaurar, sendo plenamente possível a implantação do projeto (…).” Ora, esse é o ponto central da discussão, já que uma ação criminosa, de descaracterização do bem tombado, foi realizada e caberia justamente à Justiça exigir a recomposição do bem tombado.

Não seria nem a primeira, nem a última vez que tal fato ocorreria. Como exemplo, vale citar o caso do entorno da Pedra de Itaúna, na Barra da Tijuca, bem tombado estadual. O então proprietário, o empresário Pasquale Mauro, promoveu a sua descaracterização, aceitando a deposição de entulho no local. A pedido do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural – Inepac, o juiz do caso exigiu a recomposição dos alagados em torno da Pedra, com toda a sua vegetação original. Outro exemplo eloquente é o Solar do Visconde de São Lourenço, na rua do Riachuelo, tombado pelo Iphan. O proprietário permitiu e promoveu a descaracterização do imóvel, que se encontra arruinado. Pois o Iphan exige simplesmente a reconstrução do bem tombado, não tendo até hoje aceito qualquer alternativa a esta solução.

No caso do projeto de construção de um shopping sobre extensas áreas do Jardim de Alah, ocorreram diversos erros em série. Errou a Prefeitura ao aceitar licenciar um projeto que contraria o tombamento municipal. Errou o Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro ao aceitar que a descaracterização de um bem tombado se tornasse um fato consumado, sem consequências para os que o provocaram, e sem a exigência da recomposição do parque na sua feição original. O Conselho errou ainda ao aprovar um projeto que modifica de forma radical o bem tombado.

E erra a Justiça ao não compreender que a sua função, à luz da legislação vigente, é a de exigir a correção de fatos que contrariem essa mesma legislação. A juíza do caso ainda manifesta contentamento pela possibilidade de um novo polo turístico no futuro Jardim de Alah, o que pouco tem a ver com preceitos da Justiça, a quem, acredita-se, cabe tão somente julgar a legalidade dos fatos. E o fato é que o Jardim de Alah do tombamento municipal deixará de existir com a consecução do projeto proposto na sua privatização.

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Roberto Anderson
Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.

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