A Surpreendente Justificativa da Emenda da Gravata
Fiquei surpreso com o teor da justificativa da Emenda nº 1 ao Substitutivo nº 1 ao Projeto de Resolução (PR) nº 27, de 2022, que trata da reformulação do Regimento Interno da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. É sobre essa justificativa que comento abaixo.
A proposta visa alterar o artigo 140 do novo Regimento proposto, que exige o seguinte:
“Art. 140. O uso da palavra será regulado pelas normas seguintes:
(…)
III – ao falar no Plenário, o vereador deverá fazer uso do microfone e trajar calça, paletó, gravata e camisa social;”
Com a emenda, o texto aria a ser:
“Art. 140. O uso da palavra será regulado pelas normas seguintes:
(…)
III – ao falar no Plenário, o vereador deverá fazer uso do microfone e trajar calça, paletó e camisa social, sendo facultativo o uso da gravata;”
Eis a justificativa da emenda, transcrita na íntegra, como consta no documento oficial:
“A presente emenda visa adequar o Regimento Interno da Câmara Municipal do Rio de Janeiro à realidade atual, em que a vestimenta reflete a personalidade e o estilo pessoal de cada indivíduo. Portanto, facultar o uso da gravata pode ser uma forma extremamente relevante de respeitar a individualidade e expressão pessoal.
Além deste importante ponto, cabe ressaltar outras questões relevantes ao uso facultativo da gravata:
I. A gravata pode ser desconfortável e restritiva, especialmente em ambientes quentes, muito comuns em nossa cidade tropical, ou durante longas sessões. Inclusive, a gravata pode ser um obstáculo para a circulação sanguínea e uma melhor respiração. Permitir que os vereadores usem ou não gravata pode ser uma forma de priorizar a saúde e o bem-estar durante as sessões.
II. Em vez de se preocupar com o incômodo da gravata e com a aparência formal, os vereadores podem se concentrar mais no conteúdo e na substância de seu trabalho, como discutir e votar projetos de lei importantes;
III. Um ambiente mais relaxado e informal pode fomentar uma atmosfera mais colaborativa e produtiva, permitindo que os vereadores trabalhem juntos de forma mais eficaz.
A Câmara Municipal pode refletir a diversidade da população, e permitir o uso facultativo de gravata pode ser uma forma de incluir e representar diferentes estilos e culturas. Nossa sociedade está em constante evolução, e o que era considerado formal em um determinado momento pode não ser mais relevante hoje.
Permitir o uso facultativo de gravata pode ser uma forma de adaptar a Câmara Municipal às mudanças sociais e culturais, não apenas modernizando seu regimento, mas também promovendo a igualdade e o respeito à diversidade, quebrando barreiras e tabus que ainda persistem no ambiente legislativo.”
- Veja aqui a íntegra da Emenda nº 1 ao Substitutivo nº 1
- Veja aqui o texto completo do Substitutivo nº 1 ao PR nº 27, de 2022
Uma Crítica Necessária à Justificativa: A Gravata Não é o Problema
A proposta parte de um discurso aparentemente moderno e inclusivo, mas peca por desviar o foco das verdadeiras prioridades legislativas e por utilizar argumentos frágeis ou exagerados.
Trivialização da função parlamentar
É no mínimo curioso que, em meio a tantos desafios enfrentados pela cidade — como segurança, enchentes, mobilidade e educação —, alguns vereadores estejam preocupados em alterar o Regimento para abolir o uso de um simples ório de vestuário.
Fala-se em “expressão pessoal”, mas o que se espera no plenário não é estilo, é decoro. Trata-se de um espaço solene e institucional.
Argumento médico exagerado
A ideia de que a gravata prejudica a circulação sanguínea ou a respiração é forçada. Não há estudos consistentes que sustentem que o uso breve de gravata em ambiente climatizado com ar-condicionado, como é o caso do plenário da Câmara, represente ameaça à saúde. Essa justificativa só reforça a impressão de que se está tentando transformar algo trivial em prioridade legislativa.
Confusão entre informalidade e produtividade
O raciocínio de que trajes menos formais favorecem o trabalho legislativo é perigosamente simplista. O Parlamento não é ambiente de confraternização ou happy hour. É um espaço de debate público, onde símbolos e gestos importam. A formalidade do traje reflete o respeito institucional pela população e pela democracia.
Deslocamento do conceito de diversidade
Diversidade e inclusão não se promovem pela eliminação da gravata. Promovem-se com projetos que atendam aos mais vulneráveis, com linguagem ível, com respeito à ibilidade, com representatividade real. Achar que um colarinho desabotoado simboliza modernidade é confundir forma com essência.
E Como É Fora do Rio? Gravata no Brasil e no Mundo
Congresso Nacional (Brasil)
O Regimento Interno do Senado e da Câmara dos Deputados exige traje social completo, incluindo paletó e gravata. Flexibilizações são raríssimas e não valem para o plenário.
Câmara dos Comuns (Reino Unido)
Desde 2017, os homens podem não usar gravata — desde que estejam de terno completo e não estejam discursando. Ou seja, ainda há rigidez no protocolo. A cultura do decoro continua firme.
Congresso dos EUA
Na Câmara dos Representantes, o uso de traje formal (business attire) é obrigatório. Homens devem usar paletó e gravata para falar em plenário. A informalidade não tem vez no plenário americano.
Assembleia Nacional (França)
Desde 2022, não se exige mais gravata, mas ainda é obrigatório o uso de roupas compatíveis com a solenidade do cargo. Jeans rasgado, camisetas e bonés são proibidos. A liberdade tem limite: o respeito ao espaço público.
Bundestag (Alemanha)
Apesar da ausência de regras escritas sobre trajes, todos os parlamentares comparecem com vestimenta formal. O respeito institucional prevalece pela cultura política, não apenas pela norma.
O Que Realmente Aperta o Povo
A Câmara Municipal do Rio de Janeiro tem ar-condicionado no plenário e também o terá no plenário da nova sede. Não há suor escorrendo pelo colarinho de ninguém. Há, sim, uma tentativa de criar um falso símbolo de modernidade, deslocando o debate para um ponto irrelevante diante da realidade que bate à porta dos cidadãos.
Enquanto a cidade vive problemas sérios, a Câmara se ocupa de decidir se gravata aperta ou não. Ora, o que aperta o povo não é a gravata do vereador. É a omissão. É o abandono. É o projeto sem conteúdo.
Se querem ser modernos, sejam modernos nas ideias, nas leis, na transparência, na escuta popular. Não na gola desabotoada.
“Esta Casa Tem Uma Liturgia” — E a do Rio, Não Tem?
Em 2024, o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), declarou em tom firme:
“Deputados estão indo às comissões sem terno e sem gravata. Isso é falta de decoro. Esta Casa tem uma liturgia.”
A frase resume o essencial: a liturgia da função pública não está na vaidade da gravata, mas no reconhecimento de que o mandato não é pessoal — é institucional. E, como tal, exige uma postura à altura.
O plenário não é extensão de sala de estar ou de um bar, nem lugar para afirmações de estilo. É o espaço simbólico da democracia representativa. Quando se abandona a liturgia, o que se transmite à população é relaxamento com a responsabilidade, descuido com o cargo e desapreço pela representação pública.
Se o Congresso Nacional — mesmo diante de pressões e disputas muito maiores — mantém regras de traje por decoro, por que a Câmara Municipal do Rio de Janeiro abriria mão disso justamente em nome de um falso “respeito à diversidade”?
O respeito à diversidade se constrói com projetos de inclusão, com ibilidade legislativa, com transparência, com participação popular — não com a ausência de gravatas.