Bebê reborn e Direito real: o que a Justiça tem a ver com bonecas de brinquedo?

Fenômeno das bonecas reborn levanta questões jurídicas, sociais e legislativas no Brasil, envolvendo disputas por guarda, projetos de lei e vínculos afetivos mediados por objetos.

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Imagem gerada por Inteligência Artificial

Nos últimos meses, o fenômeno das bonecas reborn — réplicas hiper-realistas de recém-nascidos — ultraou os limites das redes sociais e do mercado de colecionadores, ganhando espaço no debate jurídico e legislativo brasileiro. Casos envolvendo disputas judiciais por “guarda” dessas bonecas e projetos de lei que visam regulamentar seu uso em espaços públicos têm levantado questões sobre os limites do Direito diante de novas expressões de afeto e propriedade. O fenômeno ganhou ainda mais atenção com vídeos virais no Instagram mostrando interações emocionais intensas com essas bonecas. Neste artigo, analisamos os principais aspectos jurídicos, sociais e legislativos suscitados por essa nova fronteira entre realidade e ficção.

1. O caso da disputa judicial por uma boneca reborn
Em Goiânia, um caso insólito chamou a atenção da opinião pública: um casal que mantinha um relacionamento afetivo desejava, após a separação, definir judicialmente a guarda de uma boneca reborn. A mulher procurou uma advogada solicitando a abertura de uma ação judicial para regulamentar a convivência com a boneca, alegando que tanto ela quanto o ex-companheiro atribuíam à boneca um valor simbólico semelhante ao de um filho. Ambos compartilhavam não apenas a boneca, mas também um perfil em rede social com milhares de seguidores, o qual gerava receita por meio de parcerias e publicações monetizadas.
O pedido foi recusado pela advogada, que compreendeu o caráter afetivo do vínculo, mas destacou que, juridicamente, um objeto inanimado não pode ser sujeito de direitos. A advogada, contudo, apontou a possibilidade de uma demanda judicial em torno da istração do perfil virtual, com fundamento em direitos patrimoniais.
O caso repercutiu amplamente na imprensa e nas redes sociais, gerando debates sobre os limites do Judiciário em acolher demandas motivadas por afetos projetados sobre bens materiais.

2. A viralização nas redes sociais: afeto, performance e monetização
As bonecas reborn deixaram de ser um nicho de colecionadores e aram a ocupar um espaço expressivo no Instagram e no TikTok. Vídeos como os publicados nos perfis de influenciadoras, que simulam rotinas maternas com as bonecas — desde o preparo da mamadeira até visitas a pediatras — acumulam milhões de visualizações.
Por exemplo, em um dos vídeos amplamente compartilhados, uma influenciadora aparece chorando de emoção ao “conhecer sua bebê reborn”, num enredo que remete ao parto. Em outro vídeo, a boneca é levada para o primeiro eio no shopping, com direito a carrinho, fraldas e olhares curiosos do público. Tais conteúdos reforçam a performatividade do afeto e sua capacidade de gerar engajamento e lucro nas redes sociais.
A monetização dessas interações, somada ao vínculo afetivo e à audiência massiva, levanta um novo tipo de questão: em que medida a Justiça está preparada para lidar com bens materiais que são percebidos e tratados socialmente como pessoas?

3. Projetos de lei e o uso de bonecas reborn em serviços públicos
A popularização das bonecas reborn também suscitou reações no âmbito legislativo. Em diversos estados, parlamentares apresentaram projetos de lei com o objetivo de regulamentar ou restringir o uso dessas bonecas em espaços públicos, sobretudo em serviços de saúde e em contextos que envolvem atendimento prioritário.
Um dos projetos mais comentados foi proposto em Minas Gerais e visa proibir o atendimento de bonecas reborn em unidades de saúde públicas ou privadas. O texto do projeto estabelece sanções para pessoas que simulem ser responsáveis por crianças com base na posse da boneca, utilizando-se de prerrogativas legais reservadas às crianças de verdade, como atendimento preferencial ou o a benefícios públicos.
A justificativa do projeto alerta para o risco de desvio de recursos públicos e de atendimento indevido, e argumenta que tal conduta pode configurar inclusive infração istrativa. Ainda que os casos concretos sejam raros, a repercussão midiática gerou pressão política para uma resposta legal clara.
Outro projeto sugere a implementação de programas de acompanhamento psicológico para usuários que manifestem dependência emocional intensa com as bonecas reborn, como forma de garantir o bem-estar dessas pessoas e prevenir o uso inadequado de serviços públicos.

4. A perspectiva jurídica: objeto inanimado ou sujeito de direito?
Do ponto de vista jurídico, é importante afirmar que uma boneca reborn não possui personalidade jurídica. Isso significa que ela não pode ser titular de direitos ou obrigações, nem ser objeto de tutela jurisdicional nos moldes aplicáveis a seres humanos ou mesmo animais.
O Direito brasileiro não reconhece, até o momento, qualquer tipo de subjetividade jurídica atribuída a objetos inanimados. Logo, uma ação de guarda, alimentos ou convivência envolvendo uma boneca não encontra respaldo legal. Ainda que envolta por sentimentos humanos, a boneca é, em termos legais, um bem material.
No entanto, como a jurisprudência e a doutrina têm demonstrado em casos análogos — como os que envolvem animais de estimação, por exemplo — há margens para se discutir direitos subjetivos em relação aos bens vinculados a laços afetivos, sobretudo quando envolvem valores econômicos, imagem ou propriedade intelectual.
Assim, a discussão pode migrar para âmbitos como o direito digital (gestão de perfis em redes sociais), propriedade comum (bem indivisível adquirido em conjunto) e direitos de imagem (quando a exposição da boneca afeta os direitos de um dos “donos”).

5. Implicações sociais e psicológicas
O vínculo emocional com bonecas reborn não deve ser tratado de forma simplista. Em muitos casos, o uso dessas bonecas está relacionado a situações de luto, perdas gestacionais, infertilidade ou transtornos psicológicos que envolvem a necessidade de elaboração simbólica de ausências.
Psicólogos e terapeutas apontam que o uso das reborn pode, em alguns contextos, representar uma estratégia de enfrentamento ou de elaboração emocional válida, desde que não interfira na vida social, funcional ou profissional do indivíduo. Quando o uso se torna compulsivo ou gera distorções da realidade, pode haver indícios de transtornos que requerem acompanhamento especializado.
Nesse sentido, a legislação que propõe medidas de acolhimento psicológico às pessoas que usam bonecas reborn com finalidades afetivas ou terapêuticas é vista por especialistas como mais adequada do que respostas meramente repressivas ou punitivas.

6. Conclusão: entre o afeto e o direito
O debate sobre as bonecas reborn mostra como o Direito é continuamente convocado a lidar com novas formas de expressão social e afetiva. Se, por um lado, a legislação deve manter clareza quanto à distinção entre sujeitos e objetos de direito, por outro lado, é preciso reconhecer que os vínculos afetivos e os impactos econômicos derivados desses objetos exigem tratamento jurídico cuidadoso e atualizado.
A sociedade contemporânea tem expandido seus modos de relação com o mundo material, e o Direito não pode ignorar os sentidos simbólicos e emocionais atribuídos a determinados bens. Ao mesmo tempo, é necessário estabelecer limites objetivos para evitar abusos e distorções que possam comprometer o funcionamento de políticas públicas e a segurança jurídica.
Mais do que julgar, é papel do jurista compreender, interpretar e traduzir esses novos fenômenos para a linguagem do Direito, promovendo respostas que respeitem tanto a letra da lei quanto a complexidade das emoções humanas.

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Rafael Iorio
Sócio do Fonseca Neto e Iorio Advogados. Pós-Doutor em Ciência Política. Doutor em Direito. Doutor em Letras Neolatinas. Professor da Faculdade de Direito da UFF. Chefe do Departamento Ciências Judiciárias (UFF). Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Veiga de Almeida. Bolsista Cientista do Nosso Estado da FAPERJ.

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